Organizações denunciam impactos socioambientais causados pela exploração de gás e petróleo em terras indígenas onde vivem povos Mura, Munduruku e Gavião, nos municípios de Silves e Itapiranga (AM) . Na imagem acima, o Complexo do Azulão em Silves (Foto: Eneva/Divulgação) .
Manaus (AM) – O processo de licenciamento ambiental para exploração de gás fóssil na área do Campo de Azulão, localizado entre os municípios de Silves e Itapiranga, no interior do Amazonas, foi judicializado. A empresa não incluiu no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) a consulta prévia e informada às comunidades indígenas das etnias Mura, Munduruku e Gavião, localizadas na região. Uma liminar da Justiça Federal suspendeu as licenças ambientais e outra decisão do Tribunal Regional da 1ª Região (TRF-1) a derrubou.
A Eneva, empresa de energia, alega que a exploração não vai impactar “ambientalmente terras indígenas com as operações de extração de gás em Silves”. Já o cacique Jonas Mura, representante das seis aldeias indígenas da região, afirmou em entrevista à Amazônia Real que as comunidades estão localizadas nos limites dos empreendimentos da empresa.
No dia 20 de maio, o desembargador Carlos Augusto Pires Brandão, do TRF-1, derrubou a liminar que suspendia as licenças ambientais concedidas pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) à Eneva. O tribunal acatou os argumentos da empresa e destacou que a liminar assinada pela juíza federal Mara Elisa Andrade, da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária, no dia 19 de maio , “contraria manifesto interesse público e importa risco de grave lesão à ordem administrativa e à economia pública”.
A juíza atendeu ao pedido da Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e da Associação dos Mura, que apresentaram ação civil pública apontando irregularidades no processo de licenciamento ambiental do empreendimento Complexo Azulão, da Eneva, incluindo a falta de ampla divulgação do EIA e de consulta prévia e informada às comunidades indígenas e tradicionais da região.
A juíza também suspendeu duas audiências públicas marcadas para os dias 20 e 21 de maio, que tinham o objetivo de debater a exploração de gás e petróleo no Campo de Azulão. Na decisão, ela determina que o licenciamento seja realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a anuência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
A ação movida pela Aspac e Associação dos Mura alegou que o licenciamento não é de competência do Ipaam, mas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), e que a Funai precisa ser consultada, pois há impactos socioambientais diretos aos povos Mura, Munduruku e Gavião, que habitam a região de Silves em seis aldeias: Aldeia Gavião Real I, na Comunidade do Livramento; Aldeia Santo Antônio, no Rio Anebá; Aldeia Vila Barbosa, no Rio Anebá; Aldeia São Francisco, no Lago do Curuá; Aldeia Curuá, no Lago das Pedras; e Aldeia Mura-Karará, na margem esquerda do rio Urubu, totalizando cerca de 190 famílias.
O cacique Jonas Mura disse que as comunidades deveriam ter sido consultadas sobre o empreendimento, o que nunca aconteceu desde que a Eneva iniciou a produção comercial do campo de gás fóssil de Azulão, em setembro de 2021. “O primeiro fato e erro gravíssimo da Eneva foi não ter nos consultado. Nós somos os povos originários aqui de Silves e ninguém sabia do projeto, eles chegaram invadindo mesmo a área e dando ordens, construindo essas megas plataformas próximo de nossas aldeias”, denunciou.
Em nota enviada à imprensa, as organizações revelaram surpresa ao saber da realização das audiências públicas, que, segundo elas, foram anunciadas sem a prévia divulgação e debate público sobre o EIA de Campo de Azulão, “que não foi apresentado nem pela Eneva nem pelo órgão ambiental estadual [Ipaam]”.
As organizações também pedem que seja elaborado estudo específico de Componente Indígena e do Componente Quilombola, que segundo elas está ausente em todas as fases do licenciamento ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) apresentado pela empresa , além da identificação dos impactos do empreendimento pela Eneva e a implementação dos planos de gestão econômicos e demais medidas mitigatórias e compensatórias.
No RIMA apresentado pela Eneva, são identificadas apenas comunidades ribeirinhas no município de Silves, localizadas na área de influência direta do empreendimento, sendo elas as comunidades São João, Santa Luzia do Sanabaní, São Sebastião do Itapaní e Ituan. O relatório também cita a existência de pescadores e de um assentamento em Itapiranga (RDS do Uatumã), que não seriam afetados diretamente pelas atividades de exploração de gás fóssil.
A empresa divulgou em nota que cumpre o licenciamento ambiental do empreendimento e que ele não exige a realização de consulta prévia às comunidades tradicionais, indígenas ou quilombolas. “Os estudos técnicos realizados não identificaram impactos ambientais sobre as terras indígenas ou quilombolas e nem sobre as unidades de conservação. Também não há impactos ambientais interestaduais”, informou a Eneva.
A nota da empresa ainda diz que a Funai não participou dos procedimentos de licenças ambientais porque não há interferência do empreendimento em terras indígenas. “Cumpridos, portanto, todos os requisitos legais no referido Campo de Azulão, é importante informar que o gás produzido na unidade de Silves abastece hoje mais de 50% de toda a energia consumida no vizinho estado de Roraima. Todas as etapas do processo de licenciamento ambiental, envolvendo licença prévia, licença de instalação e de operação, reiteramos, estão ocorrendo conforme estabelecido na legislação. A Eneva apresentou o EIA/RIMA dentro do prazo exigido”.
Impactos socioambientais
Uma campanha internacional de solidariedade à Aspac marcou as redes sociais (Reprodução Facebook)
As comunidades locais já disseram antes não querer extração de gás na região, porque, de acordo com elas, as operações expõem seus territórios a vazamentos, desmatamento e invasão. O cacique Jonas Mura declarou que o impacto ambiental causado pela exploração do gás dentro dos territórios indígenas têm afetado a auto sustentabilidade dos povos. “A gente tirava o nosso sustento da caça e hoje os animais de caça se foram para mais longe por conta do barulho das máquinas da Eneva. Os peixes sumiram do rio, não temos mais aqueles peixes que tínhamos antes por causa dos barulhos de balsas e navios que hoje chegam no município de Silves trazendo várias máquinas e peças”, relatou.
Jonas também contou sobre explosões e “clarões assustadores” a qualquer hora do dia e da noite, que assustam as crianças, espantam os animais e dificultam a caça para subsistência. “Agora eles estão fazendo fogo a noite e o dia todo, queimando um grande fogo que clareia e espanta não só as caças, mas os parentes indígenas que não estão acostumados com essa situação e ficam correndo de um lado para o outro agoniados, pensando que vai pegar fogo em tudo”, disse.
A bióloga Márcia Ruth Martins da Silva, da Aspac, aponta para o potencial risco de desmatamento, extinção e fuga da fauna local, morte das nascentes de água, contaminação do ar e das águas superficiais e subterrâneas, causados pela operação da Eneva. “Existem potenciais riscos de contaminação das águas superficiais e subterrâneas da Bacia Amazônica, o que causaria grandes problemas de saúde e até morte das populações. Mas, efetivamente precisa ter um estudo profundo de impactos ambientais, para quantificar e estimar o tempo que leve a esses danos ambientais”, afirmou.
Márcia ressalta que as comunidades dependem dos recursos hídricos para as suas sobrevivências, considerando que o pescado ainda representa 55% da dieta familiar das populações indígenas. “Além do uso para o consumo humano, animal e vegetal das águas superficiais e subterrâneas”, disse.
Um estudo da 350.org, lançado em 2020, mostra que a produção de petróleo e gás na Bacia do Amazonas pode provocar ou agravar impactos socioambientais consideráveis, como desmatamento, invasões e conflitos, em 47 Terras Indígenas e 22 Unidades de Conservação do entorno. Entre as comunidades diretamente afetadas pela operação da Eneva no Amazonas estão as seis aldeias onde vivem indígenas Mura.
As aldeias estão localizadas em um território que está em processo de reconhecimento como Terra Indígena e não é demarcado fisicamente, segundo informou a Coordenação Regional da Funai em Manaus. “A Funai já realizou duas visitas ao território e está dando prosseguimento à fase inicial do processo de demarcação”, disse o órgão à reportagem. A Terra Indígena Gavião, como chamam os povos que vivem lá, depende dos Estudos de Identificação e Elaboração de Relatório para ser reconhecida oficialmente, sendo essa a primeira fase da demarcação.
Comunidades resistem à exploração
Indígenas Mura em frente ao Banco BTG Pactual na Avenida Paulista realizam um protesto (Foto Zanone Fraisat/Folhapress)
Os Mura já haviam alertado a Eneva e um de seus principais acionistas, o banco BTG Pactual, de que não aceitam a presença de empresas que exploram petróleo e gás na região. Denunciaram também que seus territórios e modos de vida já estavam sendo prejudicados pelas operações da Eneva.
Em novembro de 2021, o cacique Jonas Mura participou de um protesto contra o extrativismo de combustíveis fósseis na Amazônia diante da sede do BTG Pactual, na avenida Faria Lima, em São Paulo. Para o cacique, o protesto foi uma oportunidade de reivindicar ao banco que deixe de apoiar operações que violam direitos dos povos indígenas e agravam a crise climática. O cacique chegou a ser recebido por uma representante do banco, a quem entregou uma carta com suas demandas. O BTG Pactual, porém, nunca tomou qualquer ação para retirar sua participação na Eneva.
Em agosto de 2022, durante uma audiência pública e popular, realizada em Itacoatiara (AM), representantes indígenas, ribeirinhos e comunitários das populações afetadas pela exploração de gás no sul do Amazonas relataram os danos causados pelo setor de combustíveis fósseis sobre os territórios e as pessoas. A reunião, convocada pelas lideranças que estavam cansadas da ausência de consultas públicas oficiais, chegou a ter a participação de representantes das prefeituras de Silves, Itapiranga e Itacoatiara, membros do Ministério Público Federal, do Ipaam e da Eneva.
Apesar dos relatos sobre o empobrecimento da fauna disponível para alimentação e o aumento do risco de invasões de terra, devido a chegada de novos moradores à região, além do elevado déficit de empregos e do licenciamento ambiental pouco transparente com as comunidades, nenhuma reivindicação das comunidades foi atendida.
“Faz três anos que a Eneva está em Silves, com apoio do governo federal e prefeitura, e, sem avisar e entrar em contato com as comunidades, passaram por cima dos nossos territórios fazendo tudo do jeito deles”, disse a liderança.
Racismo e intimidação
Assembleia do Amazonas outorga do Título de Cidadão Amazonense a Damian Popolo, diretor de relações externas da Eneva. Propositura do deputado Sinésio Campos (PT). (Fotos: Hudson Fonseca/Aleam)
Contrariando a decisão da 7ª Vara da Justiça Federal no Amazonas, que havia suspendido as audiências públicas para debater a exploração de gás e petróleo no Campo de Azulão, o presidente do PT do Amazonas, deputado estadual Sinésio Campos, invadiu no dia 20 de maio a sede da Aspac em Silves, insistindo para que se realizasse o procedimento.
Segundo membros da Associação, Sinésio estava acompanhado por seguranças e pela Polícia Militar, além de autoridades locais como o prefeito do município, Raimundo Grana, quando invadiu a sede da Associação e atacou verbalmente as organizações sociais que assinaram o pedido de liminar para cancelar o evento. Ao cacique Jonas Mura, o deputado proferiu xingamentos racistas ao afirmar que não existem ‘índios’ em Silves. “Ele me chamou de ‘indiozinho fanta’ e disse publicamente que não tem índios em Silves. Pediu que a gente processasse ele por falar isso porque”, denunciou Jonas.
Sinésio Campos, atual presidente da Comissão de Geodiversidade, Recursos Hídricos, Minas, Gás, Energia e Saneamento da Assembleia Legislativa do Amazonas (ALE-AM), é conhecido por ser um político que apoia o garimpo em terras indígenas no Amazonas. Durante pronunciamento na ALE-AM, em dezembro de 2021, o deputado defendeu publicamente a “mineração sustentável” e disse que o tema “não é questão de polícia”.
Os associados da Aspec alegam que Sinésio defende os interesses da Eneva e por isso invadiu a sede da associação. Eles acreditam que o deputado teve como única motivação os “amedontrar”. Para a organização, o discurso usado pelo deputado foi de ódio contra o povo Mura. “Todo o ódio, todo o interesse e toda a truculência contra os povos originários, unicamente para defender uma empresa de extração de petróleo e gás, que destrói o meio ambiente e a Amazônia”, disse a bióloga Márcia Ruth.
O cacique Jonas Mura afirma que, com o apoio da prefeitura de Silves, a Eneva apaga a existência dos povos indígenas no município. “Nós vivemos aqui nesse lugar originalmente. Eu vivo aqui há mais de 40 anos, eu nasci neste lugar e o prefeito da cidade ainda tem coragem de falar que não tem ‘índio’ em Silves. Quando meu pai nasceu aqui, ele viveu 96 anos e aí o prefeito abre a boca para falar que não existem povos indígenas, nos causando problemas e apagando a nossa existência”, manifestou. O cacique também responsabiliza o Ipaam por “abrir as portas” para a Eneva explorar gás em Silves, porque “em vez de nos ajudar na proteção das florestas, eles querem passar por cima da gente como se a gente não existisse”.
Questionados pela reportagem da Amazônia Real sobre as irregularidades apontadas pelas comunidades tradicionais no processo de licenciamento ambiental do Campo de Azulão, nem o Ipaam nem a empresa Eneva retornaram até o fechamento desta reportagem.