Assim que cruzarem a fronteira com a Faixa de Gaza e retornarem ao sul de Israel, todos os 33 reféns libertados na primeira etapa do acordo de cessar-fogo receberão uma mochila com seus itens favoritos. Uma maneira de trazer conforto a quem enfrentou quase 470 dias de incerteza, angústia e medo da morte. Depois da volta para casa, os ex-reféns passarão por um longo processo de avaliação médica e de tratamento psicoterapêutico para curar as sequelas de tanto tempo no cativeiro.
A Operação Asas da Liberdade, como é chamada mobilização logística para o regresso dos 98 sequestrados ainda em poder do movimento extremista palestino Hamas, envolve a preparação de seis hospitais — quatro deles localizados na região central; os outros dois estarão de prontidão para casos mais urgentes, por se situarem próximos a Gaza.
Depois de mais de sete horas de deliberação, que invadiu o shabbat (dia sagrado de descanso para os judeus), o gabinete do premiê israelense, Benjamin Netanyahu, aprovou o acordo de cessar-fogo com o Hamas, mediado por Catar, Egito e EUA. Segundo a imprensa de Israel, 24 ministros votaram a favor e oito, contra. Com isso, os três primeiros reféns deverão ser libertados a partir das 12h15 deste domingo (7h15 em Brasília). Mais cedo, o gabinete de segurança de Netanyahu tinha avalizado o pacto.
Na quinta-feira (16), a trégua em Gaza ficou algumas horas no limbo, depois que o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, avisou que sairia do governo, caso o acordo fosse aprovado. Até mesmo integrantes do Likud, partido de Netanyahu, expressaram reservas em relação a uma negociação com o Hamas.
As autoridades israelenses divulgaram uma lista com os nomes dos 33 réféns. São 12 mulheres e crianças e 21 homens — 10 deles com 50 anos ou mais; os mais idosos são Oded Lifshitz, 84, e Gadi Moshe Moses, 80. Os mais novos são os irmãos Kfir Bibas, 2; e Ariel Bibas, 5. Israel também publicou a lista dos 95 prisioneiros palestinos que serão soltos antes das 16h deste domingo (11h em Brasília).
O Hamas somente divulgará a identidade dos três primeiros sequestrados soltos horas antes da devolução a Israel. O presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, garantiu que está pronto para assumir "toda a responsabilidade" em Gaza depois da guerra.
O jornal The Jerusalem Post informou que cada refém ficará hospitalizado por, no mínimo, quatro dias. Nos centros de saúde, as mulheres serão submetidas a testes de gravidez. Todos os 33 serão avaliados por nutricionistas, médicos e psicólogos. Os hospitais ganharão leitos luxuosos e aposentos para receber os familiares. Especialista em transtorno do estresse pós-traumático e chefe do Departamento de Resiliência da Zaka — organização sem fins lucrativos de resposta a desastres em Israel —, Vered Atzmon Meshulam explicou à reportagem que o processo de recuperação dos reféns será "um dos mais complexos e desafiadores". "A extrema crueldade que suportaram — terror psicológico prolongado, abuso físico e desumanização — torna este um trauma diferente de qualquer outro. A cura exigirá uma abordagem delicada e de longo prazo, que honre cada experiência individual", comentou.
Em entrevista ao Correio, Daniel Lifshitz — neto de Oded Lifshitz, 84 nos, cujo nome está na lista dos 33 a serem soltos na primeira fase — disse não saber se o avô será libertado. "Não recebemos nenhuma informação recente sobre a sua condição de saúde. Isso torna muito difícil preparar uma recepção festiva. No momento, não estamos fazendo nenhum preparativo. Nossa família decidirá o que fazer", afirmou o ex-goleiro do Maccabi Tel Aviv, de 35 anos. Yocheved Lifshitz, 84, a avó de Daniel (leia Depoimento), deixou Gaza em 23 de outubro. O casal foi capturado no kibbutz de Nir Oz, a 1,6km da fronteira, durante o massacre de 7 de outubro de 2023.
De acordo com Lifshitz, os últimos 469 dias foram de rupturas na família e de união, com mais jantares, encontros e reuniões em torno de Yocheved. "É uma montanha-russa. Por um lado, achávamos que meu avô estava morto. Duas semanas depois, dois sequestrados que voltaram de Gaza contaram tê-lo visto; então, entendemos que ele estava vivo", relatou o neto de Oded. "O que sinto agora é muita tensão. Trata-se de uma situação bastante estressante, apesar de ser a qual nós gostaríamos de estar. Então, eu a recebo com bênção e amor. Espero ver reféns voltando para casa em breve."
Em Bror Hayil, kibbutz fundado por brasileiros, a 7km da Faixa de Gaza, Yanai Gilboa, 60, admitiu ao Correio que sente alívio com o acordo. "Há debates sobre se os termos da trégua são bons ou ruins. Eu acho que é um acordo essencial. Não tínhamos outra opção. Cerca de 80% dos israelenses estão a favor da interrupção dos combates e da devolução dos reféns. Uma minoria pensa que o pacto é ruim porque vai liberar terroristas, mas, nessa altura, lamentavelmente, não temos saída", disse o filho de brasileiros. Gilboa acrescentou que a maioria da população defende a antecipação das eleições, marcadas para 2027. "O nosso primeiro-ministro vai precisar cair fora", opinou.
"O acordo é o melhor que pode ser"
"Eu esperava que o acordo de cessar-fogo fosse algo mais simples, sem qualquer problema de pular entre fases. Acho que uma única fase poderia ser melhor. Mas, este é o acordo. É o que é. Acho que é o melhor que pode ser. É claro que coisas aconteceram antes. No entanto, é muito difícil negociar com uma organização terrorista que deseja, muitas vezes, coisas que Israel não pode dar. Do outro lado, temos alguns problemas, também. Eu agradeço o presidente Donald Trump. Ele foi a chave para que isso ocorresse, ao afirmar que Netanyahu teria que libertar os reféns. Tivemos sorte por Trump ter sido eleito.
Meu avô, Oded Lifshitz, está em poder do Hamas, em Gaza. Ele é uma pessoa incrível. Começou a erguer o kibbutz de Nir Oz da areia, na fronteira de Israel, em 1957. Ele cultivou um jardim de cactos fascinante, que tem 64 anos e é uma das belezas do mundo. Meu avô sempre lutou pelas minorias e defendia que Gaza tivesse uma educação adequada. Acredita que esse seria o único modo de resolver esse conflito. Não disseminar material de ódio contra Israel. Ele é uma pessoa que ama sua família, os filhos, os netos e a bisneta. Além de jornalista, é um ativista pela paz, que sempre lutou pela coisa certa."
Daniel Lifshitz, ex-goleiro do Maccabi Tel Aviv. Na foto, com o avô, Oded, 84 anos, sequestrado no kibbutz de Nir Oz