MANAUS – Casarões no estilo renascentista com grandes portas e janelas, construídos um ao lado do outro com madeira, tijolos e pedras, são a herança de uma época de prosperidade em Manaus. Foram projetados para amenizar o calor intenso na ‘Paris dos Trópicos’, como foi batizada. As aberturas nas fachadas proporcionavam ventilação e iluminação natural.
A arquitetura inglesa é marcante no Centro Histórico e muitos desses imóveis que eram residências, hoje abrigam bares, sorveterias, hotéis, floriculturas, clínicas de exames médicos, escolas de idiomas e biblioteca. Nos 355 anos da cidade, completados nesta quinta-feira (24), os imóveis são símbolos da Belle Époque (1890-1914) e estão em todo lugar na área central da capital.
Em um tour pelo entorno do Teatro Amazonas, a historiadora Kívia Mirrana identifica relíquias que resistem ao tempo e ao abandono e são joias da época áurea da borracha em uma cidade que tinha 250 mil habitantes em 1900.
“A França é referência das elites (em Manaus) que se inspiravam nela e em outros países europeus por idealizarem a modernidade, o progresso e a civilidade, aspectos que se tornaram uma espécie de lema que vai transformar uma cidade simples em uma paris tropical”, diz Kívia, vice-presidente da ANPUH (Associação Nacional de História) no Amazonas.
Uma dessas heranças é o Ideal Clube, na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a Rua Monsenhor Coutinho. Construído em 1903 e frequentado pelas elites políticas, jurídicas e comerciais da cidade, o local propiciava ambiente para a criação de vínculos e relações sociais.
“O Ideal Clube ainda é um espaço cultural, com pequenos shows e local de apresentações teatrais e musicais. A Eduardo Ribeiro era considerada pela elite da época ‘A Avenida’”, diz a historiadora.
Outra característica histórica são os azulejos portugueses e colunas de ferro inglesas nas fachadas. “É curioso ver como a elite da época reuniu no entorno do Teatro Amazonas os espaços cultural, religioso, jurídico, educacional e de saúde. Você tem o teatro, mas tem o Ideal Clube (1903), temos a Igreja de São Sebastião (1888), o Palácio da Justiça (1884) e o Instituto de Educação (1880). São patrimônios e símbolos de uma época de prosperidade”, diz Kívia Mirrana.
A inspiração em Paris foi aplicada também no paisagismo das praças e ruas, com árvores formando cúpulas naturais para criar o aspecto de boulevard parisiense. Um exemplo desse aspecto é a Rua Silva Ramos, onde as árvores formam uma espécie de arco e cria uma atmosfera de frescor urbano. É outra característica inglesa pensada para reduzir a sensação térmica.
“A cidade se inspirava em um modelo copiado das cidades europeias. Não havia um modelo brasileiro de cidade, de civilização e de progresso. O que havia era esse modelo de movimento internacional, a Belle Époque”, diz Otoni Moreira, mestre em História e Crítica da Arte e ex-professor da Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
Escadas em espiral e colunas de ferro importado da Inglaterra compõem a arquitetura histórica manauara, seja dentro ou fora dos imóveis. Mas as construções com afrescos conservados são poucas. Entre os prédios visitados, a reportagem encontrou alguns fechados, abandonados e com lixo.
Entre a Rua Costa Azevedo (no Largo São Sebastião) e a Travessa Marçal Ferreira, está um casarão azul que pertenceu ao comerciante português Joaquim Gonçalves de Araújo, conhecido como J.G. Araújo. O lixo na área de acesso é sinal atual de abandono.
“Em 1912, 1913, todo aquele comércio da borracha começa a perder força e muitas pessoas vão embora da cidade. Outros decidem ficar por opção. Então, nós vamos ter outro tipo de sociedade, uma sociedade que não valoriza tanto o passado. É uma sociedade que surge também com o novo modelo de economia que é a Zona Franca de Manaus”, lembra Otoni Moreira.
Para Otoni, a conservação de um patrimônio não está ligada somente à reforma material dos prédios, mas também ao conhecimento histórico e afetivo da população. “A conservação não consiste somente em deixar em um estado maravilhoso um prédio histórico. Tem de haver informação à população, temos de dar um sentido importante a esse patrimônio para a história da cidade. Dessa forma, vamos ser conscientes e valorizá-lo”, diz.
Entender e valorizar
Para a urbanista Melissa Toledo, faltou maturidade política para a conservação dos prédios em Manaus. “Não vou comparar Manaus com a França, mas as nossas políticas locais não eram maduras sobre essa questão. Tínhamos uma lei orgânica municipal, da década 90, depois tivemos o Plano Diretor Urbano Ambiental (2002). Depois, o decreto 7176/2004, mas não tínhamos uma delimitação tombada do Centro, o que aconteceu em 2010 com o Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Portanto, nossos instrumentos (de legislação e conservação) são novos”, diz Melissa Toledo.
Segundo a urbanista, há uma política pública para a conservação do patrimônio histórico, mas “a gente caminha de uma forma muito lenta” no processo da valorização do legado histórico.
“É uma questão de educação patrimonial e urbana. Nós precisamos preparar a cidade para que valorize o aspecto urbano, arquitetônico, histórico. A partir do momento que a cidade entenda o significado e como fazer parte do tecido urbano, vamos valorizar e manter”, diz.
Com três séculos e meio de existência, Manaus tem a história como inspiração para se tornar uma nova cidade. Talvez não uma Paris, mas uma metrópole amazônica mais identificada com sua herança inglesa.