Cerca de 4,4 milhões de pessoas vivem em território controlado pelo crime organizado no Rio, segundo o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro

Após as cenas de violência no Rio de Janeiro na segunda-feira (23/10), quando criminosos queimaram 35 ônibus em represália à morte de um miliciano, a Polícia Civil disse que já não diferencia a ação do tráfico de drogas e das milícias, que hoje copiam os "modelos de negócios" um do outro.

No entanto, segundo o pesquisador Bruno Paes Manso, ainda existem diferenças fundamentais entre o tráfico de drogas e as milícias - que hoje controlam 60% do território dominado pelo crime organizado no Rio de Janeiro.

A principal dessas diferenças, diz ele, é que as milícias têm uma proximidade com o poder que as favorece.

"A influência das milícias no governo e a capacidade dos milicianos em garantir votos para parlamentares e influenciar a política do Rio e as instituições é muito maior", diz Paes Manso, que é pesquisador do Núcleo de Violência da USP (NEV) e autor do livro República das Milícias (Todavia, 2020).

Em entrevista à BBC News Brasil, Paes Manso explica a escalada recente da violência na cidade, que também levou ao episódio em que três médicos de São Paulo foram assassinados no Rio.

O pesquisador também fala sobre seu livro recém-publicado A Fé o Fuzil (Todavia, 2023), em que discute crime e religião no Brasil e explica o fenômeno dos traficantes que se declaram evangélicos no Rio de Janeiro.

O protestantismo inicialmente cresceu em oposição à desordem do crime na capital carioca, explica Paes Manso. Mas, nos últimos anos, segundo o pesquisador, vertentes religiosas passaram a ser usadas para legitimar autoridade de traficantes.

No livro, Paes Manso conta as histórias de diversos ex-criminosos que mudaram de vida ao se converterem. E fala sobre um "constrangimento" gerado pelo novo fenômeno de traficantes que fazem uso ostensivo da religião e não deixam o crime.

Leia os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.

Bruno Paes Manso

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Bruno Paes Manso é pesquisador do Núcleo de Violência da USP (NEV) e autor de diversos livros pela editora Todavia

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BBC News Brasil - A Polícia Civil tem falado que "já não diferencia" o tráfico da milícia (que surgiu com ex-policiais e ex-bombeiros). Hoje, quem compõe a milícia? É possível diferenciá-la dos traficantes?

Paes Manso - Existem semelhanças importantes entre os diferentes modelos de negócios criminais no Rio. A primeira é o fato de serem grupos armados que controlam territórios e a partir desses territórios extraem suas receitas ilegais.

No caso do tráfico de drogas, o básico é o controle do território principalmente para a venda de drogas no varejo. No caso das milícias, originalmente, (o negócio) começou com outros tipos de receitas ligadas à extorsão, venda de "gatonet", internet, imóveis clandestinos em área ambiental, cigarro pirata, etc. Mas cada vez mais os grupos passaram a ampliar suas receitas.

As milícias passaram a organizar a venda de drogas e o tráfico passou a organizar outros tipos de negócios. Então, realmente eles se aproximaram.

Mas as diferenças ainda são importantes. A influência das milícias no governo e a capacidade dos milicianos em garantir votos para parlamentares e influenciar a política do Rio e as instituições é muito maior.

Basta ver as operações policiais que se concentram fundamentalmente em áreas de tráfico de drogas. A população desses bairros, que são sujeitas à tirania dos traficantes, acaba também ficando sujeita às operações de guerra da polícia.

Então, milícias e tráfico estão mais próximos. Mas as milícias, por serem formadas principalmente por policiais e terem sociedades com policiais, têm mais influência no Estado e, por isso, estão menos sujeitas às operações policiais que os traficantes.

A origem das milícias continua pesando na forma como elas estruturam seus modelos de negócios, mas houve uma mudança importante. A milícia dos bairros de Campo Grande e Santa Cruz (onde aconteceram os ataques a ônibus na segunda, 23/10) é o principal exemplo.

Ela foi formada pelo ex-vereador Jerominho Guimarães e seu irmão, o ex-deputado estadual Natalino Guimarães, como a Liga da Justiça. A partir do momento que eles foram presos, depois da CPI das milícias em 2008, ela sofreu alguns rachas e acabou controlada por Carlinhos Três Pontes (Carlos Alexandre da Silva Braga), que passou a fazer sociedade com o tráfico de drogas.

E também passou a se expandir, formando uma espécie de modelo de franquias, onde eles davam apoio de armado e de capital para grupos que se formaram na Baixada Fluminense — mas sempre com participação de policiais como componentes importantes desses negócios. E com a adesão, tolerância e parceria, muitas vezes, de políticos municipais.

O Carlinhos Três Pontes foi morto em 2016; depois veio o Ecko (Wellington da Silva Braga), que morreu em 2021; e foi sucedido pelo Zinho. A milícia acabou rachando e se fragilizando a partir de 2022 quando o Zinho ( Luís Antônio da Silva Braga) e o Tandera (Danilo Dias Lima, ex braço direito de Ecko) passaram a disputar território e dando início a esse desequilíbrio que a gente está vendo hoje, essa busca de conquistas territoriais por grupos rivais que a gente vê hoje (Zinho é tio do miliciano conhecido Faustão, cuja morte levou aos ataques de segunda, de acordo com a polícia).

BBC News Brasil - Em seu trabalho, você fala bastante sobre o descontrole da polícia como uma das causas do problema das milícias no Rio. Como enxerga a atuação da corporação nesse momento? E as respostas dadas a casos como o dos médicos assassinados no início do mês ou as cenas de segunda-feira?

Paes Manso - O caso dos médicos assassinados foi um exemplo desse descontrole das polícias, um exemplo do caos, dos problemas gerados por esses conflitos que já vinham crescendo desde o primeiro semestre de 2023. A gente já tinha identificado no Monitor da Violência um crescimento de 17% nos homicídios no Rio.

O (grupo de pesquisa) Fogo Cruzado também já tinha identificado na região de Jacarepaguá um aumento de mais de 100%. Só que (isso) dentro dessa “normalidade” dos conflitos, de forma que a população acaba meio que aprendendo a conviver com eles. Isso saiu da curva de “normalidade” com a morte dos três médicos — todo mundo ficou chocado diante das vítimas que fugiam do perfil até então esperado naquele conflito.

Mas para mim o mais surpreendente foi a forma como ele foi resolvido. A própria polícia passou a divulgar que recebeu informações (da milícia) de que os médicos tinham sido mortos por engano. (Os criminosos) identificaram os responsáveis pelo equívoco, mataram os supostos autores do crime e enviaram para a polícia, que divulgou a história e acalmou de alguma forma a opinião pública. Tanto que o assunto foi esquecido dois dias depois.

Essa capacidade do crime de prestar contas para a opinião pública para que tudo continue como está, como se nada de extraordinário tivesse acontecido, foi o que mais surpreendeu. Aí veio a tentativa dos parlamentares (cariocas) de escolher um novo secretário da Polícia Civil (Marcus Amim), que precisou mostrar a que veio.

Aí o novo secretário fez a operação que levou à morte do sobrinho do Zinho. Ao que parece, o Zinho tentou mostrar força e marcar a posição, revelando sua capacidade de mobilização no crime na região, fazendo ações em 40 pontos diferentes.

É sempre difícil saber exatamente o que passa na cabeça deles. Mas o que parece é que foi para passar um recado de que (políticos) não tentem ganhar nome em cima deles, um recado que parece ter sido dado diante dessa operação com um secretário novo. É um quadro dramático porque a gente vê quase 10 anos de fortalecimento desses grupos armados no Rio de Janeiro.

Crise que vem desde a crise política do Rio, com a prisão do ex-governador Sérgio Cabral, depois a eleição do governador (Wilson) Witzel, um candidato já frágil que dois anos depois sofreu processo de impeachment.

No lugar dele assumiu um político outsider, que vinha de fora da cena da política carioca, o Cláudio Castro, que tinha sido vereador com pouquíssimos votos, vindos da Igreja Católica, da Renovação Carismática.

Ele foi mantido no poder justamente por causa da sua fragilidade, que permitia que o poder de fato ficasse nos territórios e nos municípios onde esses grupos controlam o dia a dia, o dinheiro, a economia e a política.

E não é à toa que eles apoiaram fortemente a eleição do Cláudio Castro. Ele foi eleito no primeiro turno e continuou frágil, e essa fragilidade permitiu que esses grupos continuassem ganhando força. E nessa segunda a gente viu justamente a demonstração de força desses grupos diante de um governo fraco.

BBC News Brasil - Você vê alguma solução para o Rio de Janeiro?

Paes Manso - Não existe solução que seja fora da política. O que você vai fazer? Vai entrar em guerra contra quem? Vai fazer uma guerra em defesa do quê? O fortalecimento das instituições democráticas, republicanas, depende do diálogo, da capacidade de convencimento, de mostrar que esse projeto de aumentar a violência é um projeto autodestrutivo, que a gente tolerar as milícias não é uma coisa boa.

BBC News Brasil - No livro A Fé e o Fuzil você conta que já pesquisava o tema da violência nos anos 2000 e desde então a religião e o crime já eram mundos que se cruzavam. Por que escrever sobre isso agora?

Bruno Paes Manso - Eu comecei a falar com convertidos para ouvir sobre a violência, não sobre religião. Era muito difícil conseguir entrevistar homicidas e criminosos em geral, porque eles acabam se expondo se falarem (com a imprensa). Então eu comecei a apelar para os religiosos. Eles me falavam do passado, até porque falar sobre o passado demonstrava o tamanho do milagre e da transformação na vida deles.

Eu ficava fascinado com essas transformações, para mim tudo parecia muito mágico. Eu gostava das histórias. Mas era um tema que estava muito vinculado a crenças individuais, privadas, que não eram de interesse público.

Isso começou a mudar quando eu escrevi o livro A República das Milícias. Conheci um traficante que perseguia religiões de matrizes africanas, que tinha Jesus Cristo tatuado no braço, era parceiro de um miliciano próximo do Adriano da Nóbrega, próximo à família Bolsonaro (Nóbrega tinha parentes alocados no gabinete de Flávio Bolsonaro).

Depois eu conheci a história do traficante que montou um complexo de favelas que ele denominou como Complexo de Israel. Por que aquilo era diferente? Porque eles usavam a religião para legitimar o poder e autoridade deles, era com objetivos públicos e políticos: para promover obediência, legitimar autoridade em um lugar como o Rio de Janeiro onde você tem o caos de vários grupos em confronto.

Onde todo mundo é vilão, eles estavam tentando dar um ar de mocinho (à sua atuação) a partir de um discurso religioso. Mas o discurso, ao meio tempo, era real - ele não estava inventando nada, ele realmente acreditava naquilo.

E aí veio também o bolsonarismo, que acaba sendo meio transversal a esse debate. Veio esse discurso da guerra espiritual, da luta do bem contra o mal invadindo a esfera pública. Aí era o momento de enfrentar esse assunto, havia um interesse público, uma questão política a ser explorada.

Imagem de local com quadro de Cristo

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Pesquisa feita pelo Datafolha em 2020 aponta que 31% da população do país era evangélica

BBC News Brasil - Antes eram comuns as histórias das pessoas que deixaram o crime porque viraram evangélicos. Mas agora passam a existir pessoas que se declaram evangélicas enquanto ainda estão no crime. Como elas conciliam essas coisas opostas? E como os líderes pentecostais têm lidado com o constrangimento que, você diz, esses traficantes evangélicos geram?

Paes Manso - É mais ou menos como todos os evangélicos, de alguma forma têm lidado com essa profusão de interpretações bíblicas que são características do próprio protestantismo.

Ao contrário do catolicismo, onde você tem uma interpretação mediada pelos padres e pelos teólogos católicos de cima para baixo, o protestantismo é justamente caracterizado pela inexistência dessa mediação.

Isso deu margem a uma série de congregações que a gente viu surgir em diversas ondas ao longo da história. Mas nos últimos anos isso se espraiou e as pessoas passaram a fazer interpretações mediadas a partir da leitura da existência de uma batalha espiritual que enxerga a iminência do fim do mundo.

Então os evangélicos precisam catequizar o máximo de pessoas para se aproximarem de Jesus, porque o diabo está presente em vários lugares, nos territórios, na política, nas escolas, nas universidades.

Isso casou também com uma série de discursos anticomunistas e da batalha cultural que a partir de 2014 passou a só fazer muito sentido para um monte de gente, principalmente depois das redes sociais. Esse discurso da guerra espiritual, esse discurso bélico que justifica a violência, passou a constranger muita gente de uma forma geral.

Existem muitos evangélicos que se sentem constrangidos com a forma como o bolsonarismo afetou a religiosidade evangélica. Porque o bolsonarismo é um discurso truculento, misógino, preconceituoso, que justifica a violência sob uma justificativa de que representa os valores bíblicos numa guerra do bem contra o mal. E a mensagem pacifista e universalista de Jesus Cristo do Novo Testamento fica à margem, a ponto de evangélicos levarem revólveres para a marcha de Jesus.

Esse é um tipo de constrangimento que, de uma forma geral, passou a atingir muitas pessoas, mas ao mesmo tempo acaba sendo meio natural em decorrência da horizontalidade da interpretação da Bíblia. Então, da mesma forma que os "traficrentes" (que é o termo que passaram a usar) constrangem os pentecostais, esses evangélicos que passaram a justificar a violência também constrangem. Existe uma disputa de interpretações da Bíblia nesse universo.

BBC News Brasil - Então é o mesmo discurso de fundo? Mas o constrangimento para a comunidade evangélica gerado pelo discurso bolsonarista não é equivalente ao constrangimento gerado pelos traficantes que são evangélicos? Porque houve um grande apoio a Bolsonaro entre diferentes denominações religiosas.

Paes Manso - Não, não é o mesmo nível de constrangimento. Porque essa crença pentecostal nas cidades surgiu em oposição à desordem do crime e sempre esteve muito colocada como uma oportunidade para transformar essas vidas, em bairros que se sentiam muito vulneráveis com o crime e com as drogas.

O pentecostalismo busca promover o autocontrole e a ordem em um universo em desordem, em caos. E o crime e as drogas representam essa imprevisibilidade, essa desordem. E o bolsonarismo, de alguma forma, pretende representar essa ordem, essa previsibilidade, com o uso da violência.

Então ele dialoga mais naturalmente com esse discurso de ordem e de autocontrole, com esse discurso conservador e reacionário. Então sem dúvida o discurso do traficante evangélico constrange muito mais. Só que o irônico é que eles são muito parecidos. Eles justificam a violência na defesa daquilo que eles enxergam como bem e no combate do que eles estigmatizam como mal. O discurso da guerra está presente nos dois.

BBC News Brasil - No seu livro você combate muito a estigmatização da religiosidade. Mas o uso desse termo "traficrentes" não cai um pouco nesse caminho?

Paes Manso - O termo estereotipa e estigmatiza, sem dúvida. Mas é um termo que não fui eu que inventei. Eu relato que existe esse termo e que ele foi inventado para falar sobre eles no Rio de Janeiro. Estou descrevendo como eles definem isso, algo até típico do bom humor carioca e da criatividade. Surgem esses termos da mesma forma que surgiu o termo “milícias”.

"Milícia", durante muito tempo, foi um termo muito criticado, mas já entrou para o léxico. Esse termo "traficrentes" eu não uso para estigmatizá-los ou para ou para defini-los, ou para parar tirar sarro, mas para explicar que é um termo nativo, criado naquele ambiente que você está pesquisando.

BBC News Brasil - Você entrou em contato com líderes que dizem que esses traficantes não são verdadeiros evangélicos?

Paes Manso - Claro, muitos não vão enxergar essas pessoas como reais evangélicos

Isso sem falar em pastores que pregam o ódio, que demonizam uma outra religião. Esse é um verdadeiro evangélico? Esse tipo de postura ou de crítica sempre vai existir diante da horizontalidade das interpretações entre os protestantes.

É óbvio que um traficante que se diz evangélico é algo chocante e que bate de frente com diversos dogmas e leituras bíblicas, mas tem muitas outras coisas que também são chocantes e que também são alvos de contestação entre os próprios evangélicos.

A gente tem que mostrar porque a gente está relatando isso: para aprofundar a discussão e mostrar uma realidade que muitos preferem fingir que não existe.

armas ao lido de escritos religiosos

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Armas ao lado de escritos religiosos

BBC News Brasil - Você fala muito sobre como a religião evangélica é um movimento de baixo para cima, algo do povo que chegou na elite. Quando o Lula foi eleito pela primeira vez em 2002, muito se falou que era a primeira vez que um presidente estava sendo eleito de um movimento que veio de baixo e subiu. Você acha que existe relação entre esse crescimento do pensamento evangélico e um certo empoderamento de uma classe C, e depois um achatamento dessa nova classe média?

Paes Manso - São movimentos diferentes. Quando surgiu o PT nos anos 80, a gente vinha de uma ditadura militar. Com a revolução em Cuba, a Igreja Católica na América Latina passou a temer que a revolução se espalhasse por todo o continente, porque eles simplesmente proibiam a crença católica.

Houve um processo reformista vindo da Igreja, do Concílio Vaticano 2º. Tinha uma visão da Teologia da Libertação de aproximar os padres e a religiosidade dos pobres, para que os pobres percebessem coletivamente que eles podiam pressionar o Estado por mais direitos. O Estado era referência.

Então você se unia, percebia criticamente o papel que você tinha na sociedade e lutava por mais direitos para conseguir avanço. Você tinha uma visão de que a partir dessa consciência e dessa luta dos pobres e dos excluídos o Brasil pudesse talvez se transformar numa grande Suécia, numa grande Dinamarca, exigindo do Estado seus direitos.

Com o passar do tempo, contudo, aumentou o ceticismo diante do Estado, apesar do SUS, apesar da universalização da educação, apesar do controle da inflação, apesar dos avanços.

Mas chega na crise econômica e política de 2016 e 2017 e as pessoas percebem que se elas não tiverem dinheiro elas estão ferradas. Se você não tem dinheiro, você vai para a rua, você é morto pela polícia, você passa fome, você é despejado, você não tem plano de saúde.

Ter dinheiro é fundamental nas cidades. Isso é que vai dialogar muito bem com o movimento pentecostal, muito relacionado à prosperidade, a uma celebração do empreendedorismo e da própria auto estima das pessoas. As pessoas precisam acreditar em si próprias.

A partir do momento que ela ama Deus, ela tem mais condições de conseguir. Ela vai criar uma rede de apoio com pessoas que pensam como ela, com valores iguais, iguais aos dela. Ela vai ter uma disciplina, um autocontrole, um espírito mais moderno para se incluir no mercado, para fazer parte do mercado.

BBC News Brasil - Você escreve no livro que essa cultura de empreendedorismo gera resultados mais rápidos para essas pessoas do que uma luta conjunta por uma melhoria que parece uma coisa muito mais distante.

Paes Manso - Sim, porque você vai depender só de você mesmo. A luta coletiva por mais direitos às vezes pode demorar anos e muitas vezes nunca conseguir. E aí você passa a ver o Estado como um local que todo mundo quer ganhar só pra beneficiar a si mesmo, voce passa a ver o Estado com um certo ceticismo, desacreditar no Estado de garantir direito.

É muito mais sedutora e muito mais convincente essa ideia de uma solução que dpende do próprio amor, do amor próprio, da crença em si mesmo, da vontade própria.

O pentecostalismo é uma ferramenta, entre as crenças, para as pessoas viverem melhor no mercado, em um mundo muito dependente do mercado. Mas a gente sempre imaginou que a gente ia educar as pessoas de cima pra baixo, que a universidade, o Estado ia trazer essas ferramentas.

Mas as pessoas aprendem a sobreviver e inventam ferramentas para elas próprias saírem da miséria. Então isso que pra mim é muito impressionante, da onde parecia haver só ignorância, que a gente via com o despeito, com superioridade, o povo inventou uma forma de sobreviver na miséria das cidades onde, se você não tem dinheiro, você está ferrado.

Eles inventaram uma maneira de sair dessa situação, muito a partir de valores que os tornavam mais capazes de sobreviver, de ganhar dinheiro, de sobreviver ao mercado, de se juntar, de ter uma disciplina, de ter um autocontrole, de acreditar em si próprio, de ter uma auto estima tal.

BBC News Brasil - Qualquer religião pode ser usada como manipulação. Por que o catolicismo e umbanda - que são também muitas vezes, individualmente, as religiões pessoais dos bandidos - não foram usadas também pelos traficantes como formas de legitimação?

Paes Manso - A principal diferença é que a religião evangélica permite um discurso moral e ético a partir de uma hermenêutica (interpretação bíblica) horizontal. Essa possibilidade que o protestantismo dá de você fazer uma interpretação bíblica própria é o que torna essa religião mais propensa a esse tipo de apropriação, a ponto do próprio bolsonarismo ter se apropriado dela também.

Então, o traficante evangélico do Complexo de Israel, por exemplo, diz que sonhou com Deus e que Deus disse para ele que ele era o ungido de Cristo na favela e que ia lutar contra os outros em defesa de Deus. Aí ele vai olhar no Antigo Testamento, e tem o povo de Israel que passa a ser visto como representante ético e moral de Deus na terra a partir de uma luta de séculos contra os inimigos que não obedeciam à moral divina.

Então, de alguma forma, ele se vê como representante dessa ética do bem e passa a interpretar a Bíblia e se enxergar como um representante do bem a partir de coisas que aconteceram na Bíblia. E ele passa a propor isso como um discurso de legitimidade da sua autoridade em um Estado em que você tem quatro organizações criminosas brigando pela hegemonia. Ele começa a se enxergar diferente, como mais legítimo e, por isso, mais forte.

BBC News Brasil - O fenômeno da população estar mais evangélica acontece no Brasil inteiro. Por que não acontece no PCC ainda a existência de líderes que usam a religião dessa forma ostentosa?

Paes Manso - No PCC houve gente que tentou usar igreja para lavar dinheiro. O segundo homem do PCC fez isso com igrejas do Rio Grande do Norte. Mas eu acho que aqui em São Paulo a mistura acontece de uma outra forma.

A transformação que começou a acontecer é que o dinheiro do crime começou a entrar na economia formal. Como começou a ser lavado, começou a ser investido em empresas formais de ônibus que transportam milhares de passageiros em São Paulo, em organizações sociais, em postos de gasolina, em empresas de lixo, de entulho, em adegas, em uma série de negócios. E aí sim, essas coisas (o crime) e a religião dialogam.

Tanto o esses empresários quando os neopentecostais e os pentecostais dessa terceira onda valorizam muito a capacidade de consumo e de ganhar dinheiro como uma bênção divina. A pessoa que ganha muito dinheiro se enxerga como uma espécie de abençoado de Deus.

O empresário que cresceu, mesmo que seja com o dinheiro lavado do crime, ele frequenta igreja, oferece empregos, se relaciona com outras pessoas e a mistura passou a acontecer por aí. Então você vê sim uma espécie de de mistura acontecendo, apesar dos mundos serem diferentes, a partir do momento que o crime se formaliza e passa a participar da economia a mistura acontece de uma outra forma, de uma outra maneira.

E ao mesmo tempo você tem essa cultura pentecostal gospel fazendo parte de uma cultura geral, inclusive dos criminosos que vão falar: "olha, beleza, eu ainda não me converti, mas eu respeito o pastor, eu sou justo no crime, eu corro do lado certo de uma vida errada".

BBC News Brasil - No livro você compara o PCC a uma agência reguladora do crime e diz que, no caso do Rio, as facções seriam como empresas competindo. E você fala que no início o PCC aumentou a violência para estabelecer a dominância e só depois, com as regras, o homicídio caiu. É isso que está acontecendo na Bahia neste momento, essa disputa em um lugar onde não existe uma dominância clara?

Paes Manso - Sim, na Bahia e em vários estados. São Paulo é o Estado que conseguiu, a partir do PCC, criar essas regras para a cena do crime e virar essa agência reguladora. E isso o PCC conseguiu principalmente a partir da expansão dos presídios e do controle dos presídios que eles conseguiram fazer nos anos 1990. A partir desse momento o PCC começou a dar passos mais largos e chegou às fronteiras da Bolívia, à Colômbia, ao Paraguai.

Ao mesmo tempo o PCC se comunicava com diversos criminosos nos presídios federais. E aí as gangues começaram a aparecer em todo o Brasil. De repente, são quase 60 gangues no Brasil inteiro, em todos os estados. Só que nesses estados o PCC enfrentou resistência.

Podia ser resistência local de uma gangue local, mas muitas vezes associada com o Comando Vermelho, que virou uma referência nacional. Então são mercados em disputa. Na Bahia são várias gangues. E em mercados do crime que são competitivos, essas disputas acontecem pela bala.

BBC News Brasil - Como você avalia o plano do governo federal contra a violência após a crise na Bahia?

Paes Manso - O ministro (da Justiça) Flávio Dino abordou o problema, falou corretamente: são quase 60 gangues, é um problema nacional e as gangues se comunicam, enquanto as polícias não se comunicam. Então é preciso trocar informação, é preciso juntar as instituições. Da mesma forma ele falou da relevância do controle das polícias por meio dos ministérios públicos para a redução de homicícios.

Ele falou de usar taxas de crime para medir as metas, para depois eles serem cobrados. Até hoje, ao longo de 30 anos, o governo federal buscou se omitir do problema, buscou fingir que não era com ele. Faz parte da tradição dos presidentes evitar trazer para eles o problema dos governadores.

Então eu acho que tem que ser apontado esse aspecto positivo do governo federal estar compartilhando com os governadores esse compromisso. É um princípio, me parece importante. Mas óbvio que não vão mudar as coisas do dia para noite, porque, de fato depende dos governadores e depende de uma capacidade de articulação política.

BBC News Brasil - Tenho uma pergunta um pouco mais pessoal. Ao longo do livro você conta que é agnóstico e chama de "dom" a capacidade das pessoas religiosas de acreditar. Você tem - na falta de uma palavra melhor - uma certa inveja dessa capacidade das pessoas de acreditarem, da propensão para a fé? Tem vontade de conseguir sentir o que eles descrevem?

Paes Manso - Eu já tive. Realmente, às vezes, parece que a vida fica mais fácil quando você tem respostas. Por que você vai acordar, vai sofrer, vai enfrentar vai lutar. Quando você não acredita em nada, as coisas correm o risco de cair num vazio mesmo. E acaba sendo sempre um imenso desafio você enxergar propósito na sua vida. Eu fico pensando, será que nunca vou acreditar? Sou mais cético... Mas isso também significa que eu nunca seria ateu, por exemplo, porque o ateu ele acredita na não-existência de Deus. E eu eu acredito no mistério. Eu acho que talvez exista alguma coisa que a gente vai ainda encontrar. A gente está em busca de respostas. E talvez essa seja uma das minhas motivações quase espirituais também. Ou talvez seja impossível encontrar qualquer tipo de resposta. Mas existe um mistério, eu respeito muito esse mistério.