MANAUS – Instituir a bíblia como livro paradidático nas escolas, estabelecer a saudação “paz do Senhor Jesus” como patrimônio cultural e imaterial e obrigar a inclusão de atrações gospels em eventos municipais são propostas de lei apresentadas por vereadores evangélicos da CMM (Câmara Municipal de Manaus) e de deputados da ALE-AM (Assembleia Legislativa do Amazonas). Ao propor leis para exaltar dogmas religiosos políticos buscam romper a separação entre religião e Estado.
A liberdade religiosa é assegurada na Constituição. O artigo 19 diz que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. O inciso VI, no artigo 5º da mesma Constituição, diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
A Constituição, portanto, reprime o entrelaçamento de Estado e religião, seja financiando, seja sancionando leis que condicionem a sociedade a dogmas religiosos. Os artigos acima citados instituem a interpretação sobre a existência do Estado Laico no Brasil, como é chamado o Estado que não recebe interferência de correntes religiosas. O princípio da lei é a livre manifestação da fé.
No entanto, a ligação entre assuntos estatais e doutrinas religiosas, desde sempre presentes em regras e padrões sociais, se tornou apelo político na busca de votos. O lema do ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O empoderamento do discurso conservador ocorre ao mesmo tempo com o fortalecimento de bancadas evangélicas nas casas legislativas.
Para Marcelo Seráfico, cientista político e professor na Ufam (Universidade Federal do Amazonas), o Estado Laico é uma conquista histórica e quem promove interferência religiosa na governança social tem o objetivo de atrair simpatizantes do discurso religioso como meio para obter vantagens políticas e econômicas.
“A crença religiosa, em muitos casos, preenche o vazio de sentido deixado por essa descrença nas instituições. Obviamente, há muitos fariseus simulando santidade e lucrando com a boa fé de pessoas que creem. Se há uma guerra, ela é travada em torno da consciência dos mais carentes”, afirma. “A vitória da laicidade é a vitória do republicanismo. A vitória dos que buscam impor sua fé a todos os demais, é a vitória, antes de mais nada, de quem busca acumular, pela via da religião, poder econômico e político”.
Seráfico afirma que a proposição de projetos com viés religioso busca atender a “clientela política”, mas que foge da atribuição política de parlamentares e impõe modos e vivências à toda a sociedade.
“São criados constrangimentos, cerceamentos, como meio de reforço das relações de clientela política e de conversão paulatina das estruturas públicas em aparelhos a serviço de morais e interesses privados. Em suma, iniciativas dessa ordem exprimem uma das dimensões do privatismo e das tentativas de destruição do que resta de ética pública”, disse.
Segundo o cientista político Breno Rodrigo de Messias Leite, os políticos observam a demanda eleitoral. “O eleitor quer que os candidatos se manifestem do ponto de vista da sua questão religiosa. O eleitor quer que o candidato diga: ‘olha, eu vou defender tal agenda, eu sou contra o aborto, eu sou contra a união civil’. Então, essa manifestação dos candidatos se deve a uma questão de demanda eleitoral. O eleitor quer ouvir isso também. Há uma espécie de comércio de interesses”, diz.
Para o cientista, é natural que parlamentares que detém o ativismo religioso levem pautas com o viés que defendem para a discussão social, porém, a responsabilidade de aplicação desses projetos, quando tornam-se leis, é do Poder Executivo, que tem o dever de verificar a relevância, a viabilidade e os impactos sociais das proposições.
“Esses projetos de lei são descabidos no seu propósito pedagógico. Boa parte das pessoas que determinam que a bíblia seja utilizada como meio educacional, obviamente, não é de pessoas da área da educação e, em muitos casos, se deve a uma questão de mostrar trabalho para o seu eleitorado”, acrescentou.
Breno Rodrigo afirma que não há “polarização religiosa”, porque não existem outras denominações em disputa pelo poder, já que, segundo ele, há um “ativismo evangélico” presente nos últimos anos.
“O parlamento é uma espécie de mosaico da sociedade. Ele reflete as manifestações vivas da sociedade, aquilo que é relevante na sociedade. Os outros grupos religiosos, se eles acham importante a participação política, que tratem de se organizar, e poder é disputa, é luta”, disse.
“Nesse sentido, os grupos evangélicos, como eles estão há mais tempo fazendo isso, eles já adquiriram certo grau de inteligência estratégica. Os evangélicos estão na disputa política há muitas décadas. Os católicos já tiveram papel importante nisso, mas acabaram declinando, renunciando esse protagonismo político”, acrescenta Breno.
O padre Sandoval Alves Rocha, doutor e mestre em Ciências Sociais, afirma que o Estado Laico continua existindo, mas que sobrepor uma religião sobre outras formas de crença, especialmente no parlamento, onde ocorre a representação social dos indivíduos, gera intolerância e preconceito. Ele diz que é necessário investir em uma educação cidadã para incentivar o respeito à pluralidade de religiões e aos direitos humanos.
“A gente tem que trabalhar uma religião em que prevalece o amor ao próximo, o diálogo, a convivência e o cuidado. A gente tem que partir para esses valores, que não deixam de ser valores religiosos muito alimentados pelas religiões. Mas a parte de intolerância deve ser abolida. É uma concepção muito equivocada de vivência da religião”, diz Sandoval.
“O parlamento, já que é representante do povo, tem que respeitar essa diversidade da população, não só do ponto de vista cultural, mas religioso, de gênero e da natureza. Então, é necessário que o parlamento tenha essa visão do respeito”, afirma.